sábado, 3 de outubro de 2015

Ana Maria Machado: Um adeus ao que é de César

O Evangelho ensina. Quando tentaram intrigá-lo com as autoridades, perguntando-lhe se era permitido pagar imposto, Jesus mostrou a efígie do imperador na moeda e foi claríssimo: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Mas parece que no Brasil essa página não existe ou saiu truncada. Aqui igreja dá adeus a imposto e goza de isenção fiscal. Mesmo num ajuste que se quer duro, isso não se debate.

Poucas coisas sinalizam com tanta clareza o retrocesso que enreda o Brasil atual quanto a necessidade de se insistir na defesa do Estado laico. Ou seja, leigo e neutro, que aceite as diferentes religiões mas não professe nenhuma delas.

Devia ser algo já resolvido. Mas não é. A todo momento vemos sinais de que é preciso ficar atento para não perder essa conquista fundamental.

Diz o artigo 5º da Constituição: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”

O Código Penal também traz dispositivos nesse espírito. Essa legislação não garante apenas o direito dos cidadãos à crença e à descrença religiosa. Implica ainda no dever de tolerar as crenças alheias. Assegura a não intervenção do Estado nas Igrejas. Mas também pressupõe a não intervenção das Igrejas no Estado.

Em termos históricos, é uma conquista razoavelmente recente. Talvez daí, sua relativa fragilidade. No Brasil, as constituições imperiais asseveravam que o catolicismo era a religião oficial do Império. Políticos progressistas, como Joaquim Nabuco, no final do Segundo Reinado já batalhavam pela separação entre Igreja e Estado. Mas isso só viria com a República. Antes mesmo da promulgação da primeira Constituição republicana, menos de dois meses após o 15 de novembro, um decreto redigido por Rui Barbosa já separava o Estado de qualquer religião oficial, proibia a intervenção da autoridade federal ou estadual em matéria religiosa e estipulava a liberdade de culto. Em linhas gerais, a República seguiu por esse caminho.

Na prática, por vezes a teoria fraqueja. No âmbito da recomendação de dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César, parece que César vem sendo instado a dar a Deus mais do que recebe, cedendo a pressões religiosas que contradizem seu caráter leigo. E, se o Estado tolera e aceita todas as religiões, algumas delas não toleram outras. Pior: ele eventualmente faz vista grossa diante da força eleitoral ou da capacidade de mobilização por parte de alguns grupos.

O ensino religioso nas escolas públicas brasileiras é um desses pontos controversos. A tradição das constituições da República foi manter o direito a esse ensino, desde que facultativo e respeitando a religião do aluno. Prática das mais complicadas, diante da proliferação de igrejas, da falta de recursos, de grades curriculares sobrecarregadas. O risco acaba sendo impor uma das crenças. Ou que a religião atrapalhe a educação — como nas escolas fundamentalistas americanas que rejeitam o evolucionismo.

A isenção fiscal para igrejas, ao lhes dar o privilégio de não pagar impostos, sobrecarrega os outros contribuintes. Novos templos com nomes inusitados brotam como cogumelos em bairros populares a atrair os mais simplórios. Custam pouco. Cobram dízimos. Daí a algum tempo já são prédios imponentes em áreas centrais. Poucas atividades parecem ser tão bem-sucedidas.

Em maio, quando a Câmara aprovou a MP 668 que aumentava impostos para importados, deu um jeito para nela colocar um jabuti — e com esse quelônio na lei 13.137, que a presidente não vetou, perdoaram-se às igrejas evangélicas mais de 200 milhões em multas, apesar da opinião contrária da Receita e em pleno processo de ajuste fiscal. A mesma quantia que, segundo Nelson Barbosa, o governo economizaria com sua proposta de corte de cargos comissionados e redução de ministérios.

O privilégio poupa cofres religiosos de fiscalização e pode dar ensejo a que doações a igrejas se misturem com propinas a políticos, como o Ministério Público acaba de denunciar.

Em termos morais, a isenção também custa caro: contribui para a noção de que entidades religiosas se situam acima da lei, podendo desrespeitar posturas de defesa ambiental ou a lei do silêncio. Multiplicam-se os casos de intolerância religiosa —da imagem da santa chutada por pastor diante das câmeras de TV ao da menina apedrejada por suas crenças. Mesmo sendo legal o aborto em certos casos, hospitais públicos se recusam a fazê-lo, ou não informam à mulher esse direito. Culpabiliza-se a vítima do estupro. Confundem-se direitos civis (como o casamento) com sacramentos religiosos (como o matrimônio). Nas últimas semanas tomamos conhecimento até de uma seita que se vale do trabalho escravo, incentivado por meio de lavagem cerebral dos fiéis.

Os que representam Deus na Terra bem podiam canalizar a compaixão e solidariedade e se dispor a pagar impostos como todo mundo. É amor ao próximo. E é justo.