terça-feira, 18 de novembro de 2014

Lucas Berlanza: Carlos Moore, a testemunha incômoda

Poucas vezes a pertinência de todas as denúncias contra o espírito essencialmente antidemocrático, característico dos grupos esquerdistas radicais que buscam construir hegemonia na política nacional, fica tão bem demonstrada quanto nas oportunidades em que a vítima direta do ataque dos militantes não é um conhecido defensor de bandeiras conservadoras ou liberais clássicas, em sentido estrito, mas apenas alguém que se desvia ao menos um milímetro do que eles consideram a ortodoxia suprema do universo social. O sociólogo Demétrio Magnolli, que identifica a si mesmo como social democrata, e também a jornalista Miriam Leitão, que atuou no Partido Comunista do Brasil à época do regime militar - e não se esquivou de classificar figuras como Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino na “direita hidrófoba” -, são exemplos interessantes de vítimas nesse grupo. Um registro importantíssimo se soma à lista: o do escritor cubano Carlos Moore. Importante o suficiente para ser repercutido aqui.

Na página do Correio Nagô, voltada para o movimento negro - do ponto de vista de nossos prezados socialistas, livre de suspeitas de “ranço reacionário”, portanto -, está a informação de que, ao participar de evento na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no último dia 14 de outubro de 2014, o escritor foi hostilizado verbalmente por grupos marxistas enquanto discursava. O motivo? Quem não o conhecesse poderia alegar que se trata de um “reacionário racista” opressor dos fracos e oprimidos. Mas Carlos Moore é negro.

Não apenas negro. Ele esteve pessoalmente ao lado de figuras como Malcolm X, Cheik Anta Diop e Aimé Cesare. Todos figuras relacionadas à luta dos negros por direitos civis ou ao anti-colonialismo nacionalista africano, nenhum deles exatamente simpático às ideias da chamada “direita”. Moore é considerado referência internacional nos debates sobre a questão do racismo. Graduou-se como Doutor em Ciências Humanas e Etnologia na Universidade de Paris, na França. Foi marxista, sempre esteve na esquerda e enaltece a todo o momento a cultura africana. Não pesariam suspeitas sobre ele de estar “ao nosso lado”. No entanto, Moore cometeu o crime imperdoável. Ele criticou Karl Marx.

Cubano, ele apoiou o movimento revolucionário de Fidel Castro, mas fugiu posteriormente, exilando-se já há 15 anos no Brasil. Indignou-se com a realidade ditatorial que o país vive até hoje, que ele mesmo viveu diretamente na pele, e com as POLÍTICAS RACIAIS do tirano comunista. Sim, Moore acusa o governo de Castro de promover esse tipo de segregação - não apenas o tirano latino-americano, mas todo o marxismo clássico.

Seu livro “O Marxismo e a questão racial - Karl Marx e Friedrich Engels frente ao racismo e à escravidão”, é o pivô de toda essa confusão. Nele, lançado em 2010, o cubano fundamenta sua convicção de que, inseridos no contexto europeu do século XIX, os grandes mentores originais do Marxismo ecoavam ideias racialistas em sua produção teórica. Acreditavam que a revolução socialista necessariamente seria feita e conduzida pelos “brancos” e não votavam a outras etnias a mesma relevância. Para ele, na prática, o regime cubano repercutiu essa característica, mantendo os negros em posição de subalternidade em relação aos brancos, a despeito do que digam as propagandas oficiais.

Lê-se em seu livro:

“Marx e Engels nitidamente acreditavam que a raça era um dos fatores que influenciava a evolução social das sociedades humanas. Engels afirmou: ‘Vemos nas condições econômicas o que, em última instância, condiciona o desenvolvimento histórico. Por si mesma, no entanto, a raça é um fator econômico.’ (…)”

Portanto, segundo Moore, a questão racial já estava no cerne do pensamento marxista desde a sua origem, como consequência, a princípio, da maneira porque essas teorias racialistas eram discutidas no contexto europeu, especialmente depois da publicação do Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1853), do conde de Gobineau. Não haveria, pensamos nós, razão para condenar de todo as suas ideias se esse fosse o único problema. Deixando de lado, de momento, o fato de que falamos de figuras que enalteceram o ódio, a revolta e a dissensão das “classes sociais” como ferramentas de ação política, e que somente por isso já deveriam ser encaradas com a mais franca repugnância, entendemos que é relevante considerar o contexto histórico, e lembrar que muitos outros pensadores europeus daquela época discutiam a questão das “raças”. Isso era encarado com seriedade até em meios científicos - muito embora já existissem, então, vozes contrárias à discriminação e movimentos abolicionistas, nos países em que vigorava a escravidão de negros. Coube apenas ao século XX, vivendo os horrores da eugenia, do antissemitismo como política prática e do nacional-socialismo, combinados aos avanços irrefutáveis das pesquisas genéticas, demonstrar sem contestação possível os riscos e o erro crasso dessas concepções. Julgar quem escrevesse sobre o assunto naquele momento do mesmo modo por que se julga quem escreve hoje seria incorrer na falha do anacronismo.

No entanto, de acordo com as citações reproduzidas no texto do escritor, Marx e Engels iam além; eles também introduziram o problema do extermínio, tratando como algo inevitável o “holocausto revolucionário” das raças inferiores, e legitimaram a escravidão como um instrumento de progresso. Fica difícil enxergar essas consequências extremas com a mesma condescendência com que se poderia olhar certos outros autores daquele tempo que, sem rejeitar de pronto as teses de Gobineau, não iam tão longe em suas possíveis implicações práticas violentas.

Moore identifica, aliás, em diversos trechos, a desconsideração que Marx e Engels nutriam pelos eslavos. Isso é especialmente curioso porque, por ironia, foram os russos que promoveram a primeira revolução socialista de bases marxistas a ser bem-sucedida, implantando a União Soviética. Ele conclui:

“A alegação marxista atual de que as noções de superioridade alemã e anglo-saxônica foram principalmente obra de teóricos do Terceiro Reich dificilmente se justifica com essas citações dos próprios fundadores do Marxismo. Fica evidente, então, que até mesmo em relação a povos arianos, o ‘internacionalismo’ de Marx e Engels restringia-se a uma postura essencialmente germânica.”

Moore relaciona, para apoiar sua argumentação, várias circunstâncias em que conflitos de outros povos, como árabes e mexicanos, foram tratados com desdém pelos fundadores do “socialismo científico” - justo eles, que tanto arvoraram a bandeira da revolução popular. Defenderam os Estados Unidos no confronto com o México - sim, quem diria? - e a conquista francesa dos argelinos como fatos importantes para o “progresso da civilização”, alegando Engels em artigo de 15 de fevereiro de 1849 para o Neue Rheinische Zeitung, citado no livro, que “sem violência, nada pode ser realizado na história”.

O que se vê sustentado na obra de Moore, em resumo, é que, pasmem os que o ignoram, Marx e Engels defendiam o tão temido “imperialismo”! Defendiam que as nações poderosas do Ocidente dominassem e colonizassem outras, como a Índia; no resumo do escritor cubano, “a carnificina e a pilhagem fora da Europa seriam a base para o desenvolvimento vertiginoso, no Ocidente, do capitalismo industrial e da classe de trabalhadores assalariados. Por sua vez, isso levaria à revolução e, enfim, ao Socialismo. Eles pouco se importavam com as consequências do imperialismo ocidental para suas vítimas não ocidentais.”

Uma esquerda mais recente, baseando-se em autores mais modernos como Gramsci, Foucault e a Escola de Frankfurt, ajustou suas estratégias a um modelo mais eficaz nos novos tempos. Ela passou a instrumentalizar as chamadas “minorias” na intenção de, dividindo a sociedade em grupos hostis uns aos outros, criar o tipo de atmosfera que favorece sua ascensão e consolidação no poder. Uma situação que era realmente dolorosa, sendo inegável a existência do racismo e da longa história de escravidão na América, passou a ser capitalizada por quem não está realmente interessado em excluir da face da Terra essa notória estupidez, mas sim em perpetuar a cisão como capital político a ser explorado. Essa esquerda não tratará negros e afro-descentes como “racialmente degenerados”, mas promoverá insistentes ações afirmativas e rebuliços contrários à consagração pelo mérito; na prática, agirá sempre como se eles fossem incapazes e necessitados da “caridade” forçada do governo, o que soa indigno de suas condições como seres humanos, merecendo consideração igual à de todos os outros, independente da cor de pele.

No entanto, apesar dessa reforma do pensamento da própria esquerda, realizada mais pelos imperativos do tempo que por altruísmo, alguns de seus defensores ainda parecem se incomodar com qualquer crítica mais aguda aos pais do Marxismo ortodoxo - embora este siga contando, diga-se de passagem, com uma adesão quase integral entre partidos de orientações trotskystas e leninistas. Esses esquerdistas parecem extremamente dependentes de seus antigos referenciais simbólicos, não sendo capazes de identificar as próprias contradições entre eles e as bandeiras que dizem defender - ou cinicamente fingindo que essas contradições não existem.


Carlos Moore não é um “homem da direita”; sua vida prova isso. Inclusive, no desfecho de seu livro, ele considera que as análises marxistas têm um valor positivo nas críticas formuladas ao capitalismo - valor esse que, particularmente, nós não reconhecemos.  Ele é simplesmente alguém que não deseja mais compactuar com totalitarismos assassinos, de qualquer espécie. Simplesmente alguém que mostrou, com documentação, o que realmente pensavam os ideólogos socialistas do século XIX. Um crime imperdoável, uma presença incômoda, para os comunistas que o atacam. Um testemunho precioso, para os democratas de todos os matizes, por ser insuspeito, difícil de ser desconstruído pelo outro lado, e por ter sido vítima direta da nefasta ditadura cubana. Vale conferir sua entrevista ao Correio Nagô e ler seu livro. A verdade não pode ser calada para sempre, por mais esforço que façam os inimigos da livre expressão.