quarta-feira, 6 de agosto de 2014

André Petry: Como a fé resiste à descrença

Desde que se espalhou a notícia extraída do censo demográfico do IBGE de 2000, Nova Ibiá, vilarejo de 7 000 habitantes no interior da Bahia, ganhou um estigma e uma obsessão. Como os números do censo mostravam que 59,85% dos seus habitantes diziam não ter religião alguma, Nova Ibiá passou a conviver com o estigma de ser a cidade mais atéia do Brasil. Em nenhuma outra, em ponto algum do país, tanta gente dizia não ter filiação religiosa. A segunda cidade com a maior tropa de sem-religião era Pitimbu, no interior da Paraíba, mas com números mais modestos – 42,44%. Desde então, a obsessão de Nova Ibiá é livrar-se do estigma do ateísmo. “Conheço dois ou três ateus, e só. Isso não é verdade”, diz Raimundo Santana, bispo da Igreja Batista, atualmente ocupado em preparar os festejos do ano que vem, quando sua igreja completará 100 anos na região. “Não acredito nisso, nunca ninguém aqui me disse que não tem religião”, reforça Albervan da Silva Cruz, o primeiro padre a residir em Nova Ibiá. “A cidade mais atéia? Não é verdade”, sentencia o prefeito José Murilo Nunes de Souza, de 41 anos, com a autoridade de quem confessa, meio a contragosto, que se criou católico, mas não tem religião.

Os porta-vozes de Nova Ibiá, um povoado que fica nos confins da falida zona cacaueira da Bahia, estão em harmoniosa sintonia com a maioria dos brasileiros. No maior país católico do planeta, no país do sincretismo religioso, no país onde católicos têm benzedeira e evangélicos vão a sessões espíritas, no país que alega, num misto de gracejo e esperança, ser a terra natal de Deus, o Todo-Poderoso, quase nada é pior do que ser ateu. Uma pesquisa encomendada por VEJA, realizada pela CNT/Sensus, mostra que 84% dos brasileiros votariam em um negro para presidente da República, 57% dariam o voto a uma mulher, 32% aceitariam votar em um homossexual, mas – perdendo de capote – apenas 13% votariam em um candidato ateu (veja quadro). Pior que isso só o capeta. O levantamento mostra que, entre os grupos populacionais que se convencionou chamar de minorias – racial, sexual ou de gênero –, a minoria mais rejeitada é a religiosa, ou a anti-religiosa. No Brasil de São Frei Galvão, portanto, ser temente a Deus é mais do que uma marca nacional – chega a ser, informa a pesquisa, um imperativo social.

Às vésperas do Natal, quando 2,1 bilhões de cristãos vão comemorar os 2 007 anos do nascimento de Jesus Cristo, os católicos brasileiros seguem diminuindo ano após ano, como vem acontecendo desde 1940, mas ainda formam uma estupenda multidão: são quase 74% da população brasileira – o que equivale a mais de 130 milhões de fiéis. Com alguns disciplinados e praticantes e muitos displicentes e relapsos, os católicos do Brasil, com seu número espetacular, mostram o vigor da crença divina, a pujança da fé, a robustez de Deus – uma potência curiosamente dotada de todas as qualidades inversas às da humanidade, que é criada (e Deus é incriado), que é limitada (e Deus é ilimitado) e que é mortal (e Deus é imortal). Os números da fé no Brasil talvez sirvam como explicação para dois fenômenos. Explicam a resistência da religiosidade em um mundo marcado pela descrença e, ao mesmo tempo, o notável preconceito da maioria dos brasileiros em relação aos ateus. Faz sentido rejeitar alguém apenas porque não acredita em Deus?

“Faz todo o sentido”, afirma a historiadora Eliane Moura Silva, professora da Universidade Estadual de Campinas e especialista em religião, ela própria uma atéia. “O brasileiro ainda entende o ateu como alguém sem caráter, sem ética, sem moral.” É um entendimento que parece espalhar-se de modo mais ou menos homogêneo por todas as classes sociais. Recentemente, a historiadora deu duas aulas sobre ateísmo na Casa do Saber, instituição criada para eliminar lacunas intelectuais dos endinheirados de São Paulo, e a platéia teve uma reação adversa, quase hostil, às idéias ateístas. Antes, a neurocientista Silvia Helena Cardoso, doutora em psicobiologia pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles, publicou um artigo num jornal de Campinas discutindo se os santos seriam esquizofrênicos, dada a freqüência com que tinham visões – ou alucinações. Recebeu tantas ameaças que resolveu abandonar o assunto. O professor Antônio Flávio Pierucci, da Universidade de São Paulo, especialista em sociologia da religião, explica o fenômeno: “Os brasileiros não estão habituados a se confrontar com a realidade do ateu”. É o que leva os políticos – antes, durante e depois da eleição – a sempre dizer que ninguém é mais temente a Deus do que eles.


Em maio passado, o instituto Datafolha fez uma pesquisa sobre religiosidade por ocasião da visita ao país do papa Bento XVI. A pesquisa relevou a dimensão impressionante da fé brasileira: 97% disseram acreditar na existência de Deus, 93% informaram crer que Jesus Cristo ressuscitou depois de morrer crucificado e 86% concordaram que Maria deu à luz sendo virgem. Com números tão possantes, não há dúvida de que o Brasil figura entre os países mais crédulos do mundo – e isso abre um paradoxo. São cada vez mais abundantes as descobertas científicas sobre a origem do universo e das espécies. Se a credulidade não se abala diante disso, é lícito questionar que talvez nenhuma prova científica, por mais sólida e contundente, seja capaz de reduzir a pó o teísmo, a crença no divino  “O último deus desaparecerá com o último dos homens”, diz o filósofo francês Michel Onfray, em seu Tratado de Ateologia, sucesso retumbante com mais de 200.000 exemplares vendidos na França. E, ateu convicto, ele alfineta: “E com o último dos homens desaparecerão o temor, o medo, a angústia, essas máquinas de criar divindades”.

Antes que o último homem se vá, percebem-se aqui e ali sinais de que a religião, em que pese seu vigor, começa a perder público – no Brasil, inclusive. De 1940 a 1970, a turma dos brasileiros sem religião ficou praticamente do mesmo tamanho, atolada em menos de 1% da população. Nas últimas três décadas, saltou de 1,6% para 7,3% (veja gráficos e mapa). Os sem-religião já são o terceiro maior grupo, atrás de católicos e de evangélicos. Pelos dados do último censo, os sem-religião eram 12,5 milhões, mais que um Portugal inteiro. Não são todos ateus, é claro. Entre eles, há agnósticos, secularistas, céticos e até quem acredita em Deus, mas não pratica nenhuma religião. O IBGE não pergunta aos entrevistados se são ateus ou não. Calcula-se, no entanto, que os ateus sejam uns 2%. Nos Estados Unidos, eles oscilam nessa faixa, mas os sem-religião de lá chegam aos 15%. No mundo, os ateus são uns 4%. São poucos, sobretudo se comparados aos bilhões de cristãos, muçulmanos e judeus, para ficar apenas nas três grandes religiões monoteístas, mas é uma massa crescente, principalmente nos países desenvolvidos. Na Espanha, Alemanha e Inglaterra, menos da metade da população acredita em Deus. Na França, os crentes não chegam a 30%.

Entre os brasileiros sem religião, a maior curiosidade está na Bahia de Todos os Santos, terra onde frei Henrique de Coimbra rezou a mítica primeira missa, em 26 de abril de 1500. A Bahia, que abriga Nova Ibiá e seu esquadrão de sem-religião, é o terceiro estado com o maior contingente de brasileiros sem filiação religiosa. E Salvador, entre as capitais, é a campeã nacional: 18% dos soteropolitanos não têm religião. Considerando-se o país todo, os sem-religião são mais numerosos entre os homens e entre os brasileiros com menos de 55 anos. Não se sabe de onde eles vêm. É provável que venham do rebanho de católicos desgarrados. O Rio de Janeiro, por exemplo, é o estado menos católico do país e, simultaneamente, tem o maior pelotão de sem-religião. Também é certo que boa parte dos católicos está virando neopentecostal. Nas duas últimas décadas, à queda acentuada de católicos correspondeu uma alta igualmente acentuada de evangélicos – em especial da Igreja Universal do Reino de Deus, que, sendo uma voraz sugadora de fiéis e dízimos, se transformou em potência divina e comercial.

A raiz do fenômeno que irriga o crescimento de evangélicos e de sem-religião faz parte da mesma genealogia: os laços étnicos e culturais de boa parte dos brasileiros estão se desfazendo como resultado da modernidade – do que a modernidade traz de positivo, como o aumento da escolarização e a crescente profissionalização de certas camadas sociais, e do que traz de negativo, como a desestruturação das famílias e a favelização das metrópoles. “É a religião atuando como solvente”, diz o professor Flávio Pierucci, da USP. Seus números apóiam sua percepção. Um laço étnico que se desfaz: entre os adeptos do candomblé, credo de origem africana, 40% são brancos. Outro: nos cultos afro-brasileiros há cerca de 100.000 negros, e nos cultos evangélicos os negros já são 1,7 milhão. Mais um: os brasileiros que trocam o catolicismo pelo neopentecostalismo estão dissolvendo um laço cultural e histórico, substituindo a religião fundadora do Brasil, herança que vem do fundo do passado colonial, por uma novidade na cena religiosa do país. É aí, nesse processo de dissolução, que crescem os ateus e os sem-religião.

Por razões distintas, o ateísmo também é crescente lá fora. Nos Estados Unidos, o embate entre religiosos e sem-fé ficou mais intenso depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, praticados por dezenove muçulmanos, e da eleição do presidente George W. Bush, o astro da direita cristã que se julga interlocutor de Deus. Com os cristãos conservadores exercendo notável influência em tribunais e escolas, os Estados Unidos são um caso único entre os países ricos e democráticos. Nenhum outro tem grau tão elevado de religiosidade – e de radicalismo. Em 2001, os mais fanáticos líderes religiosos americanos, em vez de condenar os atentados, disseram que eram uma punição contra um país que aceitava o aborto e o homossexualismo... Nesse ambiente, a literatura sobre o ateísmo tem feito barulho e sucesso, como é o caso do biólogo inglês Richard Dawkins, autor de Deus, um Delírio, do jornalista inglês Christopher Hitchens, que mora em Washington e escreveu Deus Não É Grande, e do filósofo americano Sam Harris, autor de Carta a uma Nação Cristã, um manifesto cortante em defesa do ateísmo (veja entrevista).

Ainda que sua história seja pouco conhecida, o ateísmo nasceu junto com a primeira religião, mas só entrou no cardápio das idéias abertamente debatidas com o advento do iluminismo, no século XVIII. Assim como os crentes, que se dividem em uma miríade de correntes e denominações, os ateus de hoje divergem em muitos pontos, mas há alguns consensos. Um deles é que a moralidade não depende das religiões, e, portanto, um ateu pode ser ético e bom. A favor da tese está a neurociência, cujas descobertas já provaram que até os chimpanzés têm noções morais, sentimentos de empatia e solidariedade – e não rezam nem crêem em Deus. Outro ponto em que todos os autores sobre ateísmo concordam é que as religiões produziram (e ainda produzem) notável rastro de sangue. Além dos exemplos clássicos das Cruzadas dos cristãos ou da expansão islâmica à base da espada, há exemplos contemporâneos. Na Irlanda do Norte, protestantes lutam contra católicos. Na Caxemira, são muçulmanos contra hindus. No Sudão, cristãos contra muçulmanos, que também se confrontam na Etiópia, na Costa do Marfim, nas Filipinas... Crentes de diferentes religiões ou denominações guerreiam no Irã, no Iraque, no Cáucaso, no Sri Lanka, no Líbano, na Índia, no Afeganistão...

É evidente que a moralidade não é mesmo resultado da religião, mas também não é resultado de sua ausência. Adolf Hitler (1889-1945), que planejou dizimar um povo inteiro, se dizia religioso. Josef Stalin (1879-1953), cujas vítimas fatais podem chegar a 20 milhões de soviéticos, se dizia ateu. Os religiosos também concordam que a fé já provocou guerras e violência. Em outubro passado, o papa Bento XVI, num encontro em Nápoles com lideranças multiconfessionais, conclamou a todos para “reiterar que a religião nunca poderia ser um veículo do ódio”. Mas também se sabe que as religiões já contribuíram para a paz e desempenham um valoroso trabalho missionário nas áreas mais miseráveis do planeta. Ninguém pode afirmar que os deuses, os livros sagrados e as preces são uma criação do homem, sem nenhuma intervenção divina. Também ninguém pode garantir o contrário. Sendo assim, enquanto a idéia de Deus, a imagem do menino Jesus na manjedoura ou o espírito do Natal servirem para confortar e congregar milhares, milhões, bilhões de seres humanos, é bom que a fé possa seguir contribuindo para levar paz a homens e mulheres. Incluindo os moradores da pequena Nova Ibiá.