domingo, 10 de novembro de 2013

Murray N. Rothbard: A propriedade privada e o desejo de morte dos anarco-comunistas

N. do T.: algumas pessoas - normalmente detratores - confundem o anarquismo de mercado (ausência de estado, livre concorrência e respeito à propriedade privada) proposto por alguns seguidores da Escola Austríaca com o anarquismo de cunho comunista, que é o ramo mais famoso do próprio conceito de anarquismo - conceito este bastante volúvel.  Esse artigo visa a esclarecer essa confusão.



Depois que a Nova Esquerda abandonou sua postura antiga - que era imprecisa, flexível e não ideológica -, duas ideologias passaram a ser adotadas pelos Novos Esquerdistas como suas guias teóricas: o marxismo-stalinismo e o anarco-comunismo.

O marxismo-stalinismo infelizmente conquistou a maioria dos partidos autoproclamados de esquerda; porém o anarco-comunismo conseguiu atrair muitos esquerdistas que querem se desassociar da tirania burocrática e estatizante que marcou a jornada stalinista.

E muitos libertários - que estão à procura de novos métodos de atuação e de aliados para tais empreitadas - acabaram se sentindo atraídos por um credo anarquista que aparentemente exalta o voluntarismo e clama pela abolição do estado coercivo.

Entretanto, trata-se de uma jogada fatal abandonar e perder o contato com os próprios princípios apenas para sair em busca de alguns aliados para ações táticas e específicas.

O anarco-comunismo, tanto na sua forma original (como proposto por Mikhail Bakunin e Pyotr Kropotkin) quanto em sua variedade atual (“pós-escassez” e irracionalista), está no extremo oposto do genuíno princípio libertário. 

Se há uma coisa que os anarco-comunistas odeiam e vilipendiam mais do que o estado, é o direito sobre a propriedade privada.  Na realidade, a principal razão pela qual os anarco-comunistas se opõem ao estado é porque eles erroneamente creem que o estado é o criador e o protetor da propriedade privada - e que, portanto, a única maneira de se abolir a propriedade privada é destruindo o aparato estatal.

Eles são completamente incapazes de entender que o estado sempre foi o grande inimigo e o grande invasor dos direitos de propriedade.

Ademais, ao detestarem e desprezarem o livre mercado, a economia baseada no mecanismo de lucros e prejuízos, a propriedade privada e a riqueza material - sendo que todas são corolários umas da outras -, os anarco-comunistas desastrosamente confundem anarquismo com a vivência em sociedades comunais - nas quais as pessoas vivem como tribos que compartilham tudo o que produzem - e com outros aspectos da emergente “subcultura juvenil”, com sua apologia do rock e das drogas.

A única coisa positiva que se pode dizer sobre o anarco-comunismo é que, ao contrário do stalinismo, trata-se de uma forma de comunismo que, supostamente, seria voluntária.  Presumivelmente, ninguém seria forçado a se juntar às comunas, e aqueles que quisessem continuar a viver individualmente, incorrendo em atividades de mercado, não seriam molestados.

Mas será que não?

Os anarco-comunistas sempre foram extremamente vagos e obscuros quanto às feições da sua sugerida sociedade anarquista do futuro.  Muitos deles já propuseram a doutrina profundamente antilibertária de que a revolução anarco-comunista terá de confiscar e abolir toda a propriedade privada - com o intuito de anular o apego psicológico que as pessoas têm para com as propriedades de que são donas.

Ademais, é difícil esquecer o fato de que, quando os anarquistas espanhóis (anarco-comunistas da linhagem Bakunin-Kropotkin) tomaram o controle de amplas seções da Espanha durante a Guerra Civil da década de 1930, eles confiscaram e destruíram todo o dinheiro dessas áreas e prontamente decretaram a pena de morte para qualquer um que transacionasse em moedas.  Isso não é exatamente um exemplo edificante das boas e voluntaristas intenções dos anarco-comunistas.

Em todas as outras áreas, o anarco-comunismo varia do perverso ao absurdo.

Filosoficamente, esse credo é um completo assalto ao individualismo e à razão.  O desejo natural que o indivíduo tem pela propriedade privada, aliado a seus esforços para melhorar de vida, para se especializar em algo, para acumular lucros e renda, são vilipendiados por todos os ramos do comunismo.  Ao invés de estimular o mérito, todos os indivíduos supostamente devem viver em comunas, compartilhando com seus companheiros todos os seus escassos bens, e tomando o máximo de cuidado para não superar o padrão de vida de seus irmãos comunais.

Na raiz de todas as formas de comunismo, compulsório ou voluntário, jazem um profundo ódio pela excelência individual, uma rejeição à superioridade natural e intelectual de alguns homens em relação a outros, e um desejo de reduzir cada indivíduo a meros participantes de um ninho comunal de formigas.  Em nome de um falso “humanismo”, um desejo irracional e profundamente anti-humano de igualitarismo deve roubar de cada indivíduo sua específica e preciosa humanidade.

Mais ainda: o anarco-comunismo despreza a razão e todos os seus corolários de longo prazo: prudência, trabalho duro e conquista individual.  Ao invés disso, tal ideologia exalta os sentimentos irracionais, as fantasias e as extravagâncias - tudo isso em nome da “liberdade”.  A “liberdade” do anarco-comunista nada tem a ver com a genuinamente libertária ausência de molestamento ou de invasão interpessoal; trata-se, ao contrário, de uma “liberdade” que representa uma escravização à insensatez, à irracionalidade, às fantasias e às extravagâncias infantis.  Social e filosoficamente, o anarco-comunismo é um infortúnio.

Economicamente, o anarco-comunismo é uma absurdidade, uma besteira ridícula e sem lógica.  Os anarco-comunistas querem abolir o dinheiro, os preços e o emprego, e propõem conduzir uma economia moderna de uma maneira um tanto peculiar, para não dizer risível: por meio do registro automático das “necessidades da comunidade” em algum banco de dados central.  Qualquer pessoa que tenha o mais parco conhecimento de economia não deve perder um único segundo de seu tempo com essa teoria.

Ainda em 1920, Ludwig von Mises expôs a total incapacidade de uma economia planejada e sem dinheiro operar além de seu nível mais primitivo.  Ele demonstrou que os preços monetários são indispensáveis para uma alocação racional de todos os nossos escassos recursos - terra, trabalho e bens de capital.  Somente o sistema de preços permite que tais recursos possam ser racionalmente direcionados para os setores e áreas onde eles são mais desejados pelos consumidores e onde eles podem operar com sua maior eficiência.  Os socialistas reconheceram a precisão do desafio de Mises, e começaram - em vão - a procurar uma maneira de ter um sistema racional de preços de mercado dentro do contexto de uma economia socialista planejada.

Os russos, ao tentarem criar, logo após a Revolução Bolchevique, uma economia comunista e sem a circulação de dinheiro com seu programa “Comunismo de Guerra”, reagiram horrorizados quando viram a economia russa à beira do precipício.  O próprio Stalin nunca tentou revivê-la.  E desde a Segunda Guerra Mundial os países do Leste Europeu vivenciaram um total abandono desse ideal comunista e uma rápida guinada a mercados mais livres, a um livre sistema de preços, à adoção do mecanismo de lucros e prejuízos, e a uma promoção da riqueza dos consumidores.

Não foi nenhum acaso que tenham sido exatamente os economistas dos países comunistas os responsáveis por liderar essa mudança de rumo repentina, saindo do comunismo, socialismo e do planejamento central, e indo em direção a mercados mais livres.  Não é nenhum crime ser ignorante em economia, a qual, afinal, é uma disciplina específica e considerada pela maioria das pessoas uma “ciência lúgubre”.  Porém, é algo totalmente irresponsável vociferar opiniões estridentes sobre assuntos econômicos quando se está nesse estado de ignorância.  Entretanto, esse tipo de ignorância agressiva é inerente ao credo do anarco-comunismo.

O mesmo comentário pode ser feito em relação à muito difundida crença, seguida por muitos dos Novos Esquerdistas e por todos os anarco-comunistas, de que não mais precisamos nos preocupar com economia e com métodos de produção, pois supostamente já estamos vivendo em um mundo “pós-escassez”, onde tais problemas inexistem.  Porém, embora nossa condição de escassez seja claramente superior àquela do homem das cavernas, ainda estamos vivendo em um mundo de generalizada escassez econômica.

Como saberemos que o mundo atingiu a “pós-escassez”?  Simplesmente quando todos os bens e serviços que quisermos tornarem-se tão superabundantes que seus preços sejam zero; ou seja, quando pudermos adquirir todos os bens e serviços como se estivéssemos no Jardim do Éden - sem esforço, sem trabalho e sem utilizar quaisquer recursos escassos.

O espírito anti-racional dos anarco-comunistas foi bem expressado por Norman O. Brown, um dos gurus da nova “contracultura”:

O grande economista von Mises tentou refutar o socialismo demonstrando que, ao se abolir as trocas, o socialismo tornava impossível o cálculo econômico - e, logo, a racionalidade econômica .... Porém, se von Mises estiver certo, então o que ele descobriu não foi uma refutação, mas uma justificativa psicanalítica do socialismo .... É uma das tristes ironias da vida intelectual contemporânea que a resposta dos economistas socialistas aos argumentos de von Mises tenha sido tentar demonstrar que o socialismo não era incompatível com o “cálculo econômico irracional” - isto é, que ele poderia preservar o desumano princípio da moderação e da frugalidade (Life Against Death, Random House,1959, pp. 238-39.)

O fato de que o abandono da racionalidade e da lógica econômica em nome da “liberdade” e das fantasias irá levar ao esfacelamento da civilização e dos modernos métodos de produção e nos devolver ao barbarismo não inquietam os anarco-comunistas e os outros expoentes da nova “contracultura”.  Mas o que eles parecem não perceber é que os resultados desse retorno ao primitivismo seriam a fome generalizada e a morte de quase toda a humanidade - e um tormentoso estado de subsistência para aqueles que conseguirem sobreviver.

Se eles tivessem a chance de implementar seu modelo, perceberiam que é realmente um tanto difícil ser alegre e se sentir “irreprimido” quando se está morrendo de fome.  Tudo isso nos leva à sabedoria do grande filósofo espanhol Ortega y Gasset:

Nos distúrbios causados pela escassez de comida, a turba sai em busca de pão, e os meios que ela utiliza normalmente envolvem a destruição das padarias.  Isso pode servir como símbolo da atitude adotada, em escala maior e mais complicada, pelas massas de hoje para com a civilização que as sustenta .... A civilização não é algo que “apenas está aqui”; ela não é algo que se auto-sustenta.

Ela é artificial .... se você quiser fazer uso das vantagens da civilização, mas não está preparado para se preocupar com a conservação da civilização - você está acabado.  Instantaneamente, você se descobrirá sem civilização.  Apenas um escorregão e, quando você atinar, tudo já terá desaparecido no ar.  A floresta primitiva aparecerá em seu estado nativo, como se as cortinas que cobrem a natureza pura tivessem sido recolhidas.  A selva sempre é primitiva e vice-versa: tudo o que é primitivo é meramente uma selva. (José Ortega y Gasset, A Revola das Massas, New York: W.W. Norton, 1932, p. 97.)


Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.