domingo, 6 de março de 2011

J.R. Guzzo: Dois países

O Brasil, como o governo nos informa há pelo menos oito anos, tem políticas culturais que causam inveja ao resto do mundo. Também está entre os melhores do planeta, conforme acaba de atestar o ministro de Minas e Energia, o Sistema Brasileiro de Produção e Distribuição de Energia Elétrica. Todos sabem que o Brasil dispõe do maior, melhor e mais admirado programa de ajuda aos pobres jamais visto sobre a face da Terra. São incomparáveis, igualmente, os benefícios que a população recebe em troca do dinheiro que entrega ao Fisco – o ex-presidente da República, a propósito, chegou a dizer em público que tinha “orgulho” dos impostos do Brasil e que um país só é desenvolvido se tem imposto alto. Somos abençoados, na verdade, até onde menos se espera. Jamais alguém poderia adivinhar, por exemplo, que o atendimento na rede pública de saúde é amplamente aplaudido pela população em geral; mas é justamente isso que nos revela um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, repartição estatística do governo federal que já descobriu, em pesquisas anteriores, que se paga pouco imposto no Brasil, o número de funcionários públicos é modesto e outros prodígios do mesmo porte.

O que mais? É melhor ir parando por aqui, pois esse tipo de lista vai longe. Mas é certo que isso tudo mostra, mais uma vez, as diferenças que existem entre o Brasil dos que governam e o Brasil dos que são governados. No Brasil dos governantes, festeja-se a excelência das “políticas públicas” para a cultura; no Brasil dos governados, há goteiras nos museus e cupins nas bibliotecas. No Brasil dos que governam, o último apagão de energia foi atribuído pelo ministro da área não a possíveis carências no sistema, mas a um probleminha bobo com a parafusem da cabecilha, ou algo parecido – coisa à toa de mecânica que não precisa preocupar ninguém. No Brasil dos que são governados, e no qual, para orgulho do ex-presidente, se pagam 45% de imposto sobre o montante de cada conta de luz, a energia simplesmente acaba. As diferenças entre esses dois países, um onde se manda e se cobra, outro onde se obedece e se paga, não são apenas uma curiosidade brasileira; têm consequências práticas, e aí se pode ver a segunda parte do problema. Um governo cada vez mais satisfeito consigo mesmo, que acredita na própria-propaganda e se informa sobre o Brasil lendo jornais ingleses e tomando como verdade qualquer elogio que receba em alguma língua diferente do português, está seriamente empenhado em arrumar confusão. Acostuma-se, entre outras coisas, a conviver em paz com sua incapacidade de execução. Enquanto a China, nos últimos sete anos, construiu 100.000 quilômetros de autoestradas e pôs em funcionamento 8 000 quilômetros de sua rede de trens de alta velocidade, para ficar só em exemplos da área de transportes, o Brasil federal não foi capaz de entregar um único metro de uma ou de outra coisa. A arrecadação total de impostos, em 2011, vai para mais de 1 trilhão de reais, mas o aeroporto principal da maior cidade do país até hoje não tem uma terceira pista, centenas de quilômetros de rodovias são descritos pelo próprio governo como “intransitáveis” e brasileiros continuam morrendo, a cada ano, por falta de obras de defesa contra acidentes naturais.

No problema diriam os jornais e revistas que deixam Brasília tão encantada. Talvez tenham razão. O problema é só de quem paga essa fatura.

O governo Dilma Rousseff mal completou dois meses e já tem um belo escândalo no prontuário: o Ministério do Esporte, privatizado alguns anos atrás em favor do Partido Comunista do Brasil, entregou algumas dezenas de milhões de reais a “ONGs” de militantes, amigos e conexos ou a empresas-laranja ligadas a elas, em troca de obras ou serviços que não foram feitos, ou foram feitos mal e porcamente. Nada de muito original, claro, mas quem sabe não haveria aí uma janela de oportunidade para a nova presidente? A oportunidade seria tomar partido, desde já e enquanto é tempo, contra a transferência de dinheiro público para os bolsos privados da “militância” – e avisar que não haverá lugar, em seu governo, para quem se mete nesse tipo de complicação. A alternativa é fingir que não está acontecendo nada de mais e esperar que o barulho passe. Foi o caminho escolhido por seu antecessor, com o resultado que se sabe: começou com Waldomiro Diniz, foi piorando e acabou em Erenice Guerra.

A cobra botou o seu ovo no governo Dilma. Se ele for deixado à vontade, só vai resultar em mais cobra.