terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Mario Vargas Llosa - Lição sueca de tolerância

Texto publicado no Estadão

Se um dia você for a Estocolmo, aconselho-o a visitar, além dos museus, palácios, o centro velho e as ilhas, um modesto bairro ao sul da cidade chamado Rinkeby. A grande maioria da sua população é formada por famílias imigrantes e é uma das áreas mais pobres do país, embora a noção de pobreza na Suécia, país que atingiu o mais alto nível de vida do mundo, juntamente com a Suíça, tem pouco a ver com o significado dessa palavra para o restante do planeta.

É importante conhecer em Rinkeby a sua escola pública, instituição que é o espelho do que deveria ser a sociedade humana, o mundo todo, se prevalecesse, entre nós, mortais, a sensatez, o discernimento e o espírito prático. Nesta escola, meninos e meninas falam 19 idiomas diferentes e veem de uma centena de países diversos. Todas essas crianças conhecem o sueco e o inglês, mas não perderam a língua materna. Isso porque a escola organizou-se de maneira que elas tenham aulas, pelo menos uma hora por semana, na língua que falam em casa e dos seus ancestrais. O diretor da escola, Börje Ehrstrand, está convencido de que a integração dessas crianças à cultura e aos costumes da Suécia é mais fácil se, em vez de rechaçarem, elas reivindicarem e sentirem orgulho da sua origem. A filosofia dessa escola se resume numa palavra: tolerância.

De tudo o que fiz e vi em oito dias em Estocolmo, pouca coisa me deixou tão comovido como a tarde que passei em Rinkeby, para assistir a um espetáculo preparado pelos alunos. Fui acolhido por 19 meninos e meninas, cada um falando um idioma distinto, formando um verdadeiro leque de raças, tradições, religiões e culturas do mundo. Havia adolescentes escandinavas de minissaia ao lado de garotas do Iêmen usando véu, árabes norte-africanos misturados com turcos, chilenos e chineses, roupas extravagantes e formais.

As crianças começaram a sessão cantando canções natalinas nórdicas. Em seguida começou a apresentação, que consistiu de duas partes. A primeira foi um resumo da vida e obra de Alfred Nobel (1833-1896), o químico que inventou a dinamite, foi um poderoso industrial e deixou sua fortuna para a criação dos prêmios que levam seu nome.

Depois, a representação das crianças ficou mais didática, explicando quais eram as invenções e realizações, cujos autores tinham merecido, este ano, os prêmios Nobel de medicina, Física e Química. Foi de tirar o chapéu! Na véspera, num programa da BBC, os próprios laureados tentaram explicar para nós, leigos, sobre seus inventos, mas, que não falo apenas em meu nome – nos deixaram sem entender nada.

Na segunda parte, as crianças narraram e representaram, resumidamente, um romance meu, O Falador. A encenação das crianças foi maravilhosa, ilustrando com desenhos, música e imagens, os textos que os diversos narradores liam em idiomas diferentes. Era como se eu estivesse revivendo minhas sensações quando criei essa história.

Há 20 anos, tanto o bairro quanto a escola de Rinkeby não eram nem a sombra do que são agora. A violência reinava nessa área e fotos da época mostram que as salas de aula, os pátios e corredores da escola eram um monumento à desordem e o rendimento escolar era o mais baixo do país. Foi nestas condições que um dos professores, Börje Ehrstrand, assumiu a direção. As reformas que introduziu foram discutidas com os pais dos alunos que passaram a ter uma participação constante em todas as atividades escolares, incluindo as didáticas. Esses pais, juntamente com os alunos, assumiram a limpeza do local, a título de trabalho voluntário.

Os dois primeiros anos são os mais difíceis, sendo que a tarefa fundamental da escola é eliminar a desconfiança dos recém-chegados para com seus companheiros de classe que se vestem diferente, falam outra língua, adoram outro Deus. Alguns se adaptam com facilidade; os com mais dificuldades têm cursos especiais, que são assistidos também pelos pais, assessorados por dois psicólogos. No geral, a partir do terceiro ano, a comunicação e o intercâmbio são espontâneos e pode-se falar de uma integração, porque os denominadores comuns – o idioma e a aceitação do “outro” – já fazem parte da personalidade do aluno.

A escola de Rinkeby não é notável só porque ali coexistem meninos e meninas de todo o espectro cultural, mas também porque há três anos os seus alunos figuram nos primeiros lugares do concurso nacional de matemática e pelos excelentes sucessos acadêmicos dos alunos medianos. Como nos últimos anos a demanda aumentou, a escola cresceu e hoje uma quarta parte dos alunos vem de outros bairros e a fama da instituição transcendeu as fronteiras suecas. A Comunidade Europeia premiou a escola como a que mais sucesso teve na prevenção da delinquência.

Não é de estranhar que, ao contrário do que costuma acreditar, a escola não é mais do que um reflexo daquilo que ocorre em torno dela, e neste caso a transformação teve um efeito saudável na comunidade que a cerca, atenuando a violência, as disputas étnicas e religiosas, a criminalidade.

A Suécia não ficou imune aos preconceitos contra a imigração que, fomentados pela crise financeira e a consequente redução do emprego fez com que partidos e movimentos extremistas, anti-imigrantes e xenófobos passassem a ter uma presença que não tinham. Pela primeira vez, um deles entrou no Parlamento sueco nas últimas eleições. Não é um fato raro. Quando uma sociedade é vítima de alguma catástrofe, econômica ou política, surge a necessidade de um bode expiatório e é claro que os imigrantes são os principais alvos.

Não importa que todas as estatísticas mostrem que, sem a imigração, os países europeus não conseguiriam manter os altos níveis de vida que possuem e o que os trabalhadores estrangeiros dão para a economia de um país é muito superior ao que dela recebem. Mas a verdade se fragmenta contra o que Popper chamava de espírito da tribo, o rechaçar instintivo do “outro”, um repúdio primitivo que é o maior obstáculo para um país alcançar a civilização.

Por isso, o que a escola de Rinkeby conseguiu é muito importante e deveria servir de modelo para todos os países que recebem grandes contingentes de imigrantes e querem evitar os problemas decorrentes da marginalização e da discriminação contra eles. É preciso começar com as crianças.

Que elas aprendam a conviver com quem tem fala, pele, deuses e costumes diferentes e que, com esse convívio, se desprendam de tudo aquilo que dificulta ou impede a coexistência com os outros. Esta é a maneira mais segura de conseguir, mais tarde, quando já são pessoas adultas, que elas possam viver em paz nessa diversidade étnica e linguística que, gostemos ou não, será o traço primordial do mundo no qual já entramos.