segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Rodrigo Constantino - O Túmulo do Fanatismo

“A religião é vista pelas pessoas comuns como verdadeira, pelos inteligentes como falsa, e pelos governantes como útil.” (Sêneca)

Muitos acham que religião não se discute, mas eu não concordo. Afinal, o tema é sagrado apenas para os que assim o consideram, e estes não têm o direito de exigir dos demais o mesmo tratamento de reverência. Acredito que a crença religiosa dogmática é a maior inimiga da liberdade, e por isso creio que o tema não só pode como deve ser debatido sob a luz da razão.

Foi o que fez Voltaire, o “Pai do Esclarecimento”, segundo Karl Popper. Em seu livro O Túmulo do Fanatismo, Voltaire liga uma metralhadora giratória, mas munida com sólidos argumentos, contra o fanatismo religioso. Trata-se de uma crítica dura, bastante pesada, que com certeza machuca qualquer crente. Aqui faço um breve resumo do que ele diz, e peço que aqueles não dispostos a questionar a própria fé sequer leiam o restante do artigo. Afinal, como dizia Carl Sagan, “não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências, baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar”.

Logo no começo, Voltaire afirma que “um homem que recebe sua religião sem exame não difere de um boi que atrelam”. Examinar, questionar, é um dever de qualquer um que respeita a razão. A diferença básica entre a ciência e a religião é essa: uma está aberta à crítica, implora para que você prove que ela está errada, enquanto a outra o condena se você tentar provar que ela está errada, mandando aceitar com fé e calar a boca. Duvidar já é pecado! Um abismo intransponível separa os dois métodos, as duas posturas.

As críticas embasadas de Voltaire foram focadas no Judaísmo e no Cristianismo, mas ele fala de forma geral, quando diz que “a desconfiança aumenta quando se percebe que o objetivo de todos aqueles que estão à frente das seitas é dominar e enriquecer quanto puderem, e que, desde os dairis do Japão até os bispos de Roma, a única preocupação foi erguer para um pontífice um trono fundado na miséria dos povos e muitas vezes cimentado com seu sangue”.

Mas centrando a mira no Cristianismo e no Judaísmo, Voltaire começa questionando se existiu mesmo um Moisés. O que se fala de sua vida seria tão fantástico como o encantador Merlin. Voltaire busca também a origem muito suspeita das histórias de Moisés, como ser salvo das águas num cesto, que poderiam ser cópias de contos muito semelhantes na Arábia. O resto todo de sua história seria igualmente absurda e bárbara, com dados fantásticos e impossíveis, exageros grosseiros etc. “Que lamentável fazer Deus descer em meio a raios e trovões, sobre uma pequena montanha calva, para ensinar que não se deve ser ladrão!”. Os judeus, de forma geral, não são poupados: “Como eles mesmos reconhecem, são um povo de ladrões que carregam para um deserto tudo o que roubaram dos egípcios”.

A vida do “bom” rei Davi é um exemplo do que Voltaire tem em mente. Tomou o trono de Isbaal, filho de Saul, mandou assassinar Meribaal, filho do seu protetor Jônatas, entregou aos gabaonitas dois filhos de Saul e cinco de seus netos para que fossem enforcados, assassinou Urias para encobrir seu adultério com Betsabéia. “A seqüência da história judaica não é mais que uma trama de crimes consagrados”, ele diz. Salomão, o sábio, começa por degolar seu irmão Adonias. Fora isso, teria setecentas mulheres e mais trezentas concubinas. Tais seriam os costumes do mais sábio dos judeus, ou como lembra Voltaire, ao menos os costumes que lhe atribuem com respeito rabinos e teólogos cristãos.

Para Voltaire, o primeiro profeta foi o primeiro embusteiro que encontrou um imbecil. O mundo esteve cheio de Nostradamus, e o Alcorão conta, segundo ele, duzentos e vinte e quatro mil profetas. As histórias dos vários “profetas” são estapafúrdias, uma mais extravagante que a outra. E várias contidas na Bíblia, como as histórias de Isaías que andava nu em pêlo no meio de Jerusalém, ou Jonas que teria passado três dias no ventre de uma baleia. Surgir alguém que transforme água em vinho no meio disso tudo parece algo bem compreensível, portanto.

Voltaire começa questionando a origem de Jesus, que nasceu numa época em que o fanatismo estava em alta. Vários que acreditaram nele escreveram Evangelhos, que quer dizer “boa nova” em grego. Cada um escrevia uma Vida de Jesus, todas discordando, mas parecidas na enorme quantidade de prodígios incríveis atribuídos ao fundador da nova seita. Num desses livros, diz-se que Jesus era filho de uma mulher chamada Mirja, casada em Belém com um pobre homem chamado Jocanam. Havia na vizinhança um soldado de nome José Panther, que teria se apaixonado por Mirja, que teria engravidado dele. Existe mais que isso na história, mas Voltaire conclui: “É mais provável que José Panther tenha feito um filho a Mirja do que um anjo tenha vindo pelos ares cumprimentar da parte de Deus a mulher de um carpinteiro”. De fato. E como não custa lembrar, Deus tinha irmãos homens, se Jesus era Deus.

Em seguida, Voltaire começa a relatar os “milagres” atribuídos a Jesus. Em um deles, Jesus manda o diabo para o corpo de dois mil porcos, numa região onde não havia porcos! Voltaire vai mostrando como a ignorância dos que inventavam essas fantasias entrega a própria falácia da coisa. Por fim, Jesus foi crucificado por ter chamado seus superiores de “raça de víboras”, o que era na época crime punido desta maneira. Foi executado em público, mas ressuscitou em segredo.

A quantidade enorme de Evangelhos que relatavam a fantástica vida de Jesus era repleta de contradições. Para Voltaire, esses Evangelhos, transmitidos para os pequenos rebanhos de cristãos, foram visivelmente forjados após a queda de Jerusalém. Um deles, atribuído a Mateus, fala em Igreja sendo que no tempo de Jesus sequer existia Igreja. Antes dos quatro Evangelhos famosos e aceitos hoje, os padres dos dois primeiros séculos quase sempre citavam os que são agora denominados apócrifos. Voltaire pergunta então: “Por que o mais escrupuloso dos cristãos ri hoje, sem qualquer remorso, de todos esses Evangelhos, de todos esses Atos, que não estão mais no cânon, e não ousa rir daqueles que são adotados pela Igreja?”. São mais ou menos os mesmos contos, mas “o fanático adora sob um nome o que lhe parece o cúmulo do ridículo sob outro”.

Está dito, em mais de um Evangelho, que Jesus enviou os apóstolos expressamente para expulsar os demônios. O próprio Jesus reconhece que os judeus tinham esse poder. Não havia nada mais fácil para o diabo do que entrar no corpo de um mendicante, que pagava para ser exorcizado. Curiosamente, os diabos jamais ousavam apoderar-se de um governador de província ou de um senador. Eram sempre os que nada possuíam que foram possuídos. As religiões são como pirilampos: só brilham na escuridão. Não é muito diferente do que vemos nas igrejas oportunistas que pululam os países mais miseráveis e com mais ignorantes. Mas o mesmo que ri do espetáculo embusteiro da Igreja Universal hoje, aceita com um respeito fanático o que lhe chega sobre Jesus, sequer tendo coragem de questionar algum dos fatos incríveis atribuídos a ele.

Todo Deus era bem vindo em Roma. As diferentes seitas conviviam entre si de forma mais ou menos pacífica. Nenhuma era louca o bastante para querer subjugar as outras. A seita cristã foi a única que, no final do segundo século, ousou dizer que queria a exclusão de todos os ritos do império, e que deveria esmagar todas as religiões. O seu Deus era um Deus ciumento. “Que bela definição do Ser dos Seres é imputar-lhe o mais covarde dos vícios!”.

Os cristãos foram com muito mais freqüência tolerados do que sujeitos a perseguições. O reinado de Diocleciano foi, durante 18 anos, um reino de paz e até de favores para eles. Prisca, mulher de Diocleciano, era cristã. Construíram templos soberbos, depois de terem dito que não eram precisos templos para Deus. A Igreja passava a ser opulenta e cheia de ostentação, com vasos de ouro e ornamentos deslumbrantes. Veio então Constantino, que fez-se reconhecer imperador no interior da Inglaterra por um pequeno exército de estrangeiros, ignorando Maxêncio, eleito pelo senado. Voltaire chama Constantino de tirano, pois seu direito era proveniente apenas da força, e por este ter mandado matar o próprio filho, Crispus, e sufocado a própria mulher, Fausta. Foi ele que convocou a assembléia em Nicéia para resolver o “assunto bem medíocre”, segundo o próprio, sobre a incompreensível Trindade cristã.

O concílio redigiu um formulário no qual o nome Trindade não é nem sequer pronunciado. Consta apenas um “cremos também no Espírito Santo”, sem maiores explicações. O mais divertido do concílio, no entanto, foi a decisão sobre alguns livros canônicos. Os Padres estavam confusos com a escolha entre os Evangelhos, e decidiu-se amontoar todos eles sobre um altar e rogar ao Espírito Santo que jogasse no chão todos aqueles que não fossem legítimos. Uma centena deles teria caído no chão. Um meio infalível de conhecer a verdade! Foi Constantino, através desse concílio, que tornou o Cristianismo a religião oficial do império romano.

A carnificina, os horrores, a ganância, as intrigas, os assassinatos, tudo que se seguiu pela Idade Média é conhecido pela história. Não é preciso sequer falar de Inquisição. Voltaire chegou a mostrar para padres essas atrocidades todas, e estes respondiam apenas que era uma boa árvore que produzira maus frutos. Voltaire rebatia que era uma blasfêmia afirmar que uma árvore que carregara tantos e tão horríveis venenos tivesse sido plantada pelas mãos do próprio Deus. “Na verdade, não existe nenhum padre que não deva corar e baixar os olhos diante de um homem honesto”.

Os horrores da religião, nem de perto, são monopólio da Igreja Romana. Esta ganhou em quantidade de crimes apenas porque teve riquezas e poder por mais tempo. Os horrores do Islã são amplamente conhecidos, e Maomé mesmo foi um guerreiro empedernido. Ainda hoje os fanáticos muçulmanos trazem o terror ao mundo civilizado. Alguns podem acusar o ateísmo pela barbárie recente do comunismo, mas eu diria que o comunismo não deixa de ser uma seita religiosa, calcado na fé dogmática e totalmente contra a razão e a tolerância, que pede o debate e o questionamento. Marx é o Jesus dos comunistas, e se a religião é o ópio do povo, o marxismo é a cocaína.

Benjamin Franklin teria dito que “o jeito de ver pela fé é fechar os olhos da razão”. De fato, os homens precisam exercitar mais a razão, e não aceitar dogmas de forma fanática e cega. Aquele que sequer aceita questionar sua fé, seus dogmas, sua crença e sua religião, perdeu a capacidade que o homem tem de raciocinar. Passa a ser um autômato que repete “verdades” reveladas, por mais absurdas que sejam. A humanidade ainda tem muito para avançar se enterrar de vez o fanatismo religioso, que tanta desgraça trouxe ao mundo.